Revisão criminal

A revisão criminal e a falta de preservação da prova na ação penal originária

A Revisão Criminal é uma ação autônoma de impugnação que visa modificar uma ação penal transitada em julgado, a fim de desconstituí-la.

 

Do latim, revisio, revisionem, a palavra “revisão” significa “examinar de novo; segunda leitura ou vista; vista minuciosa de escrito ou impresso para expurgá-lo dos erros”[1].

 

Segundo leciona Guilherme de Souza Nucci, “o objetivo da revisão não é permitir uma ‘terceira instância’ de julgamento, garantindo ao acusado mais uma oportunidade de ser absolvido ou ter reduzida sua pena, mas, sim, assegurar-lhe a correção de um erro judiciário”[2].

 

Aqui, é importante destacar que erro judiciário “é a má aplicação do direito ou a deficiente apreciação dos fatos da causa, por parte do órgão jurisdicional, que resulta em decisão contrária à lei ou à verdade material. O erro faz parte da natureza humana. Daí o antigo adágio latino errare humanum est, reconhecendo a limitação e a falibilidade do homem. […]. A palavra erro, derivada do latim error, do verbo errare, significa falsa concepção acerca de uma pessoa, de uma coisa ou de um fato. É a ideia contrária à verdade, podendo ser o falso tomado como verdadeiro ou o verdadeiro como falso. […]. O erro é um juízo explícito ou implícito, no qual quem o formula se equivoca, sem o saber, quanto ao objeto da apreciação” (Médici, Sérgio de Oliveira. Revisão criminal. Disponível em <https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/452/edicao-1/revisao-criminal>. Acesso em 4/6/2023).

 

No dizer de Paulo Rangel, “o pressuposto primordial e indispensável é a sentença transitada em julgado, que deverá estar eivada de erro de procedimento ou erro de julgamento. […] A sentença não pode apenas ter transitado em julgado para ser proposta a revisão criminal. Mister se faz ainda que tenha vício de procedimento ou de julgamento, sem os quais não há que se falar em revisão criminal. O erro judiciário e a mola propulsora da revisio” (Direito Processual Penal, 6ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 761).

 

Conforme podemos observar, é desses erros de julgamento que surge a possibilidade do ajuizamento da Revisão Criminal dos processos

[1] Torrinha, Francisco. Dicionário português latino; Fontinha, Rodrigo. Novo dicionário etimológico da língua portuguesa. A palavra revista tem significado semelhante nesses dicionários (“ação de examinar de novo”, no primeiro; “ação ou resultado da ação de revistar; segundo exame duma coisa”, no segundo). Também Antônio Moraes Silva registra a similaridade de ambos os vocábulos: “Revisão, s.f. usual. O trabalho de rever alguma obra para emendá-la, corrigi-la. Revista, s.f. segunda vista, exame; v.g. revista da causa julgada em última instância ordinária; v.g. concedeu-se ao autor revista por alegar que a sentença foi dada por juízes peitados” (Silva, Antônio Moraes. Diccionario da lingua portugueza, p. 1813).

[2] Código de processo penal comentado. 11ª. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 1073.

findos, que é admitida em algumas hipóteses. Colhe-se do Código de Processo Penal:

 

Art. 621.  A revisão dos processos findos será admitida:

I – quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos;

II – quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;

III – quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.

 

Como resultado, o art. 626, caput, do Código de Processo Penal prevê que, “julgando procedente a revisão, o tribunal poderá alterar a classificação da infração, absolver o réu, modificar a pena ou anular o processo”.

 

Isso, contudo, se torna um grande entrave quando as provas, que pertencem ao processo e foram produzidas pelas partes, não estão mais nos autos da ação penal.

 

O Estado-Juiz, por força do art. 5º, LVI, da CF/1988[1], deve garantir ao acusado que a ação penal seja instruída somente com provas lícitas como forma de prover uma prestação jurisdicional válida e legítima. Um dos fundamentos da CF/1988 é a “dignidade da pessoa humana”[2] e, por isso, elementos probatórios ilegais não podem fundamentar uma condenação, devendo ser desentranhados do processo, bem como as provas derivadas dessa ilicitude (art. 157, § 1º, do Código de Processo Penal[3]).

 

Essa regra é tão importante que, a partir da Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o Código de Processo Penal passou a prever, de forma expressa, a denominada cadeia de custódia, que é “o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte” (art. 158-A, caput, do CPP).

 

Ora, o Estado-Juiz não tem apenas o dever de preservar a integridade e idoneidade da prova, mas, também de mantê-la nos autos a fim de demonstrar a sua cronologia, porque “são elas,

[1] Art. 5º. […]; LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

[2] Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […]; III – a dignidade da pessoa humana;

[3] Art. 157.  São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. § 1o. São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.

será o processo, mais que isso, são as evidências – no início de tudo – que determinarão a instauração ou não de processo”[1].

 

Dessa forma, “sendo a cadeia de custódia da prova o conjunto de procedimentos indispensáveis ao manuseio, guarda e manipulação de todo e qualquer elemento probatório, a quebra desta significa, portanto, a falta ou a não conservação integral e correta dessas provas. Isso prejudica categoricamente a credibilidade desses elementos probatórios”[2].

 

Por isso é que laudos periciais, provas documentais, mídias relativas aos depoimentos colhidos, além das provas digitais, devem permanecer nos autos até que seja autorizada judicialmente o seu desentranhamento ou destruição, com a ciência das partes, especialmente porque a defesa precisa conhecer a fonte da prova para que possa rastreá-la e fazer o controle da sua legalidade. Os arquivos das gravações das interceptações telefônicas, por exemplo, somente podem ser inutilizados respeitando o disposto no art. 9º da Lei n. 9.296/1996[3].

 

Isso também importa em sede de Revisão Criminal, visto que, se as provas existentes na ação penal não foram preservadas, o condenado fica impedido de exercer o contraditório e a ampla defesa, nos termos do art. 5º, LV, da CF/1988[4], na medida em que não terá acesso à integralidade das provas para que possam ser revisitadas.

 

Tal circunstância, via de consequência, impede que o Tribunal reveja o caso, o que acaba por ofender, também, o princípio do duplo grau de jurisdição, garantia do condenado implícita no art. 5º, XXXV, da CF/1988[5].

 

Assim, considerando que os elementos probatórios não devem ser considerados de forma isolada, a supressão, destruição ou perda de parte da prova que existia na ação penal causa grave prejuízo ao condenado, porque não se terá mais a confiabilidade acerca daquele material, razão pela qual entendemos que a falha estatal

[1] Ramos, Rafaela. A cadeia de custódia da prova no processo penal pela perspectiva da lei 13.964/2019 como mecanismo garantidor do devido processo legal em um estado democrático de direito. Revista da Defensoria Pública RS | Porto Alegre, ano 12, v. 1, n. 29, p. 154, 2021.

[2] Ramos, Rafaela. A cadeia de custódia da prova no processo penal pela perspectiva da lei 13.964/2019 como mecanismo garantidor do devido processo legal em um estado democrático de direito. Revista da Defensoria Pública RS | Porto Alegre, ano 12, v. 1, n. 29, p. 160, 2021.

[3] Art. 9° A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada. Parágrafo único. O incidente de inutilização será assistido pelo Ministério Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu representante legal.

[4] Art. 5º. […]; LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

[5] Art. 5º. […]; XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

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