Saída temporária: inconstitucionalidade e irretroatividade

A Lei n. 7.210/1984, ou de Execução Penal, “tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”, conforme art. 1º. Trata-se de um “dever do Estado” que objetiva “prevenir o crime” e orientar o preso “à convivência em sociedade”, nos termos do art. 10, caput, da Lei n. 7.210/1984.

Dito de outro modo, “a finalidade da pena não é apenas proteger a sociedade, prevenindo com força dissuasória a prática de crimes mediante ameaça de punição (prevenção geral) e segregar o delinquente do convívio social. Sua função legal é também a de reintegrar o delinquente à coletividade”.

Por isso, como forma de promover a ressocialização, a Lei n. 7.210/1984, há mais de três décadas, concedeu aos apenados que cumprem pena no regime semiaberto o direito de gozar do benefício da saída temporária, nesses termos:

Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semiaberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos:
I – visita à família;
II – frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução;
III – participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.
[…]
Art. 123. A autorização será concedida por ato motivado do Juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a administração penitenciária e dependerá da satisfação dos seguintes requisitos:
I – comportamento adequado;
II – cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4 (um quarto), se reincidente;
III – compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.
Art. 124. A autorização será concedida por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4 (quatro) vezes durante o ano.
Parágrafo único. Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante, de instrução de 2º grau ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes.
§ 1º. Ao conceder a saída temporária, o juiz imporá ao beneficiário as seguintes condições, entre outras que entender compatíveis com as circunstâncias do caso e a situação pessoal do condenado:
I – fornecimento do endereço onde reside a família a ser visitada ou onde poderá ser encontrado durante o gozo do benefício;
II – recolhimento à residência visitada, no período noturno;
III – proibição de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos congêneres.
§ 2º. Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante, de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes.
§ 3º. Nos demais casos, as autorizações de saída somente poderão ser concedidas com prazo mínimo de 45 (quarenta e cinco) dias de intervalo entre uma e outra.

Ocorre que os arts. 2º e 3 º da Lei n. 14.843, de 11/4/2024, revogaram o benefício da saída temporária ao instituir o seguinte:

Art. 2º. A Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:
[…]
Art. 122. ……………………………………………………………………………………………………….
[…]
§ 2º. Não terá direito à saída temporária de que trata o caput deste artigo ou a trabalho externo sem vigilância direta o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa.
[…]
Art. 3º. Ficam revogados os seguintes dispositivos da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal):
[…]
II – art. 124.

Inicialmente, entendemos que a Lei n. 14.843, de 11/4/2024, por se tratar de novatio legis in pejus, só pode ser aplicada às execuções penais formadas após o advento da citada norma, isso em razão do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, em que a lei posterior deve ser aplicada a fatos anteriores. Veja-se o teor da Carta Magna e do Código Penal:

CF/1988:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

Código Penal:
Art. 2º. […].
Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

Sobre isso, colhe-se da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgada pelo Decreto n. 678, de 6/11/1992:

Art. 9. Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no memento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinquente será por isso beneficiado.

Ao tratar sobre a matéria, Fernando Capez explica:

Leis que aumentam as penas ou impõem novos obstáculos para o condenado cumprir sua pena também possuem natureza penal, pois restringem o direito de liberdade e intensificam o direito de punir.
[…]
As normas de Direito Penal não podem retroagir e alcançar crimes cometidos antes de sua entrada em vigor quando forem prejudiciais ao acusado.
[…]
A saída temporária é um instituto de natureza penal, não podendo ser considerada uma norma relativa à disciplina interna do presídio, mas uma atenuação na intensidade do poder de punir estatal, do mesmo modo que as regras que estabelecem o livramento condicional, a progressão de regime, a remição, a anistia, o indulto, a graça ou qualquer outro instituto que reduza o potencial punitivo do Estado. A extinção da saída temporária, tendo natureza penal, submete-se à proibição de retroagir tendo em vista seu caráter inequivocamente mais severo.

Sendo penal a sua natureza, tais normas se submetem ao princípio da irretroatividade in pejus (Curso de processo penal. SP: Saraiva. 31ª ed. 2024, p. 44-45).

Assim, para fatos delituosos praticados antes da edição da Lei n. 14.843/2024, a norma não retroage e não há como aplicar a vedação à saída temporária.

Outrossim, se a saída temporária permitia que o condenado mantivesse laços familiares, continuasse estudando ou se aperfeiçoando dentro de alguma profissão, ou participando de atividades que contribuíssem para o seu retorno ao convívio social, é certo que a exclusão de tal benefício é uma ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/1988).

Além disso, a alteração causada pela Lei n. 14.843/2024 contribui para o aumento da marginalização e o preconceito de pessoas condenadas pela prática de crimes, além de desrespeitar direitos humanos básicos, em completa violação ao art. 3º, III e IV, e art. 4º, II, da CF/1988.

Não é só isso, visto que a exclusão do benefício da saída temporária é uma afronta a direitos e garantias fundamentais previstos na CF/1988:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
[…]
XLVII – não haverá penas:
[…]
e) cruéis;
[…]
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

Sim, porque a saída temporária é praticamente a única forma de o apenado ter contato com o mundo exterior, mesmo que de uma forma restringida.
Aliás, extrai-se do texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgada pelo Decreto n. 678, de 6/11/1992:

ARTIGO 5
Direito à Integridade Pessoal
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.
6. As penas privativas da liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados.
Devemos lembrar, também, que a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347/STF reconheceu o “Estado de Coisas Inconstitucional” do sistema carcerário brasileiro, de modo que a postura regressiva do legislador com a nova lei apenas prejudica as políticas públicas que envolvem o contingente de presos no Brasil.

Não bastasse, o princípio constitucional implícito da vedação ao retrocesso social, que trata de proteger direitos fundamentais, “limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana” (Canotilho, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 9. reimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 338-339).

Joseane de Menezes Condé, citando o jurista Ingo Wolfgang Sarlet, afirma que o princípio da vedação ao retrocesso social “é uma das formas de garantia contra possíveis medidas arbitrárias do Poder Público, permitindo que conquistas sociais não sejam aniquiladas pela administração pública e pelo legislador ordinário”.

Tal princípio é de suma importância e encontra fundamento em diversos dispositivos constitucionais:

a) o princípio do estado democrático e social de direito, que impõe um patamar mínimo de segurança jurídica, o qual necessariamente abrange a proteção da confiança e a manutenção de um nível mínimo de segurança contra medidas retroativas e, pelo menos em certa medida, atos de cunho retrocessivo de um modo geral; b) o princípio da dignidade da pessoa humana que, exigindo a satisfação – por meio de prestações positivas e, portanto, de direitos fundamentais sociais – de uma existência condigna para todos, tem como efeito, na sua perspectiva negativa, a inviolabilidade de medidas que fiquem aquém deste patamar; c) o princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais contido no artigo 5º, § 1º, da CF/88 (LGL\1988\3), que abrange também a maximização da proteção dos direitos fundamentais; d) a proteção dos direitos adquiridos, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito que encontram fundamento no artigo 5º, caput, da CF/88 (LGL\1988\3); e e) a segurança com um valor fundamental constitucional, que está incluída no elenco dos direitos invioláveis, arrolados no caput do artigo 5º, ao lado dos direitos à vida, liberdade, igualdade e propriedade.

Por esses motivos, entendemos que a saída temporária não pode ser vedada por ser uma medida inconstitucional, sem contar que as oportunidades de reinserção social da pessoa condenada contribuem para a diminuição da reincidência na prática de crimes.

Autor: Fabiano Leniesky, OAB/SC 54888. Formado na Unoesc. Advogado Criminalista. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduado em Advocacia Criminal. Pós-graduado em Ciências Criminais. Pós-graduado em Direito Probatório do Processo Penal.

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